top of page

A CONSCIENTIZAÇÃO DAS MEMÓRIAS E A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL

    O conceito de identidade está intimamente ligado à questão das memórias acumuladas na cidade. A medida com que a cidade de São Paulo foi se consolidando, e especialmente da meneira frenética como cresceu, a teia da memória e da história se mesclou com as complexidades urbanas, sociais e políticas e a idéia de unidade, de nação, deixou de ser uma noção essecialmente da memória, pois sua influência nos espaços foi sendo soterrada e fragmentada entre camadas históricas da cidade que não deu mais conta de sua heterogeneidade, oposições e conflitos. 
De uma forma geral, é difícil sentir afinidade e pertencimento nos espaços urbanos, o ser paulistano carece de apego ou relação com a matéria e a história, mas ao mesmo tempo recorre à memória o tempo todo. No decorrer da pesquisa comecei a reparar a grande quantidade de empreendimentos comerciais, bares e restaurantes que utilizaram de fotos antigas de São Paulo como decoração, ou reproduzir alguma imagem antiga da cidade, fotos de bonde estão espalhadas por toda parte, por exemplo. Além do enautecimento do que é o “tradicional”, a idade de um estabelecimento é motivo de orgulho e propaganda, ou seja, existe essa busca identitária pelo passado mesmo ele sendo distante e inatingível.
    O apego e a relação com os espaços da cidade pode ser potencializado a medida que os alimentamos de informações, gerando conhecimento e percepção do ambiente a nossa volta, torná-los conscientes, ou seja, trazer ao conhecimento fatos antes desconhecidos, fatos que hoje parecem impossíveis, cômicos ou extraordinários, podem ativar o efeito de rememorar o espaço em que vivemos e compartilhamos com milhares de pessoas Colocar em pauta os elementos formadores de cultura de uma cidade faz com que seus agentes se sintam não apenas participantes, mas atores de uma mesma realidade, “os individuos vão desnudando a sua realidade e se descobrindo nela.”(17)
    A cidade torna-se o objeto semióforo, no sentido em que ela se mostra da maneira como  é, mas cabe a nós, como observadores, pesquisadores e arqueológos urbanos, descascar suas camadas e atribuir sentido e significado para sua existência. Tornar o invisível, visível, buscar as raízes históricas e compreender como isso influencia no presente e transformá-la em um elemento de contemplação coletiva. No entanto, dinstinguir os elementos importantes e tomá-los como base de uma compreenção mais ampla de cidade não é uma tarefa fácil. É aí que entra o papel do especialista, para conseguir visualizar todos os elementos e relacioná-los de maneira a deixar claro as possibilidades de aproximar-se desse complexo objeto de estudo e vivência, mais especificamente, tornar as camadas palpáveis e perceptíveis para quem busca essa relação, mas não possui o embasamento necessário.

“[As intervenções didático-pedagógicas] devem tomar esse ato consciente como um saber acerca de si e do mundo, por mais que ele apareça encoberto aos olhos de quem o vê de fora por não pertencer ao lugar e por não dominar os códigos culturais ali vigentes”(18)

    
    O ato didático e o aprendizado geram a valorização dos bens da cidade pelos próprios agentes que ocupam seus espaços e acabam por desempenhar um papel em sua dinâmica cultural, ou seja, buscar envolver e aproximar as pessoas que se relacionam diariamente com os elementos significativos da cidade, como espaços públicos e os bens culturais, constitui uma relação tangível e relevante na concervação e apropriação desses elementos. É de extrema importância relacionar grupos sociais vinculados aos bens por meio de práticas educacionais e simbólicas do cotidiano. A cultura material torna-se elemento do processo de “alfabetização cultural”, assim como uma concepção de cultura que inclui as manifestações eruditas e populares.
    A “Educação Patrimonial”(19) é um termo utilizado por algum educadores e profissinais da área de conservação do patrimônio cultural que tem como função este papel didádico mas também problematizador de questões relacionadas ao bem cultural, colocando em pauta reflexões em aberto. Ao mesmo tempo estuda-se o caráter técnico do elemento histórico com um olhar para a ética, no entanto não entende a ética como a técnica que se justifica em si mesma, sem considerar a camada de análise social e humana em cima do bem cultural mas busca a “reciprocidade que situa o diálogo e a troca cultural como um horizonte possivel.”20 , ou seja, o constante compartilhamento de informações e relações que envolve o patrimônio cultural e o olhar social gera a noção de pertencimento e cuidado com o objeto patrimonial. 
    Além da esfera geral do conceito de identidade e da compreenção do patrimônio histórico e sua inserção no espaço público, uma reflexão surgiu a partir de uma experiência pessoal no início da pesquisa. Estudando os patrimônios culturais e sua relação com seu entorno urbano, comecei a refletir sobre essa relação: que ela apenas poderia ser compreendida quando fosse levado em consideração a relação entre as pessoas e o espaço urbano em que o bem cultural está implantado. Nesse momento, comecei a perguntar a pessoas próximas que viveram na cidade algumas décadas antes de mim, para estabelecer esse paralelo de utilização dos espaços públicos antes e nos dias atuais. Conversei com minhas avós: uma que cresceu no interior e vinha para a cidade utilizar desses espaços públicos e vida urbana e outra que nasceu e foi criada no centro de São Paulo e tinha uma relação de vizinhança com os mesmos espaços. Nessas conversas, veio a tona um fato histórico em que as duas compartilharam da mesma maneira, pertencendo à mesma camada história e vivenciando o mesmo acontecimento e contando de jeitos diferentes. Em 1954, as duas se deslocaram para o mesmo lugar da cidade: O viaduto do chá, onde aviões militares soltavam no céu milhares de papéis de alumínio e dos edifícios mais altos, canhões de luz iluminavam uma chuva de prata que se extendeu pelo vale do anhangabaú e marcou a memória de muitas pessoas. Eu nunca havia ouvido falar desse acontecimento, e me pareceu extraordinário e absurdo que ninguém nunca tenha me comentado sobre a existência desse evento. Até hoje eu não consegui encontrar nenhum fotografia ou material gráfico representativo desse momento, apenas relatos e os papeizinhos de aluminios guardados até hoje.
    Apesar do caráter extremamente pesssoal e particular dessa história, isso me fez refletir sobre importância de dividir essas memórias para que seja possível compreender melhor o espaço em que vivemos e ainda mais, estabelecer uma relação diferente com essa cidade, que por muitas vezes se mostra desumana e impetuosa, mas que possui muitas virtudes. Uma das forma de desvendá-las, talvez, seja tornar consciente esses fatos escondidos de pessoas que viveram nos mesmo espaço antes de nós e trazer para os dias de hoje a riquesa e efervecência de 462 anos de histórias.
 

Notas:

17. SILVEIRA, Flávio L. A.; BEZERRA, Márcia. “Educação Patrimonial: perspectivas e dilemas”. In: LIMA FILHO, Manuel F. et all (orgs.) p. 82

18. idem 17 p. 87

19. idem 17 p. 83

bottom of page