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O PATRIMÔNIO E O COTIDIANO

    Para abordar os patrimônios culturais, busquei compreender o próprio conceito de patrimônio de uma forma mais ampla. O que qualifica um edifício, um espaço ou um objeto a ser considerado patrimônio e o que isso implica. O título de patrimônio cultural, já carrega uma gama de significados que espraia em seu entorno. Questionei se esses significados já existiam antes do edifício ser nomeado bem cultural ou se foi apartir dessa designação que esse edifício adquiriu tal importância, destacando-se dos demais edifícios. Krystoff Pomian(1) desenvolve um trabalho que aborda o tema da origem dos elementos constituídos como patrimônios culturais e revela que os elementos precedentes da classificação de patrimônios são os semióforos “todos os objetos, lugares, e pessoas poderiam ser identificados como um semióforo, portanto não seria a coisa em si o dado importante, mas sim a representação simbólica dela”(2), esses elementos possuem função exclusivamente contemplativa, pois é por conta desta nominação em que é feita sua significação e existência, de maneira que, qualquer edifício, espaço ou objeto pode ser considerado patrimônio cultural desde que possua este caráter de “contemplação coletiva”(3), ou seja, os patrimônios históricos estão carregados de significados, não apenas pela materialidade e função que exercem, mas pela própria classificação de bem cultural.
    Além disso, os bens culturais são símbolos autênticos representativos de seu contexto histórico e ao serem patrimonializados são valorados deixando-os, muitas vezes, congelados em um tempo inexistente. Ao mesmo tempo, a rede de significados atrelada à esses marcos arquitetônicos ultrapassa a materialidade do objeto, pois, uma vez inserido no meio urbano estão passíveis às mudanças históricas, refletem diretamente no cotidiano vivido ao seu redor de maneira única e dinâmica. Os bens culturais consolidam uma paisagem patrimonial que inevitavelmente interfere na vida e no cotidiano das pessoas, independente de seu uso, estilo ou apropriação. “As coisas não estão fora de lugar. De fato, estes elementos materiais que perpetuam na paisagem não são, em si, a memória, mas a sua fonte. São, portanto, a base material para a construção do imaginário histórico”(4) .
    Desse modo, além da importância do bem cultural no espaço também deve-se levar em conta a camada social em que ele está inserido, considerando as próprias pessoas como agentes de mudança e pertencimento da paisagem patrimonial, afinal é a camada social que interage com o edifício de maneira dinâmica e espontânea fazendo com que o patrimônio seja interpretado de acordo com a visão de mundo no qual o mesmo está situado, transformando-o em cultura e cotidiano. Mesmo que o edifício seja tombado e por conta disso exerce a função política de representatividade e simbólica, o uso e implantação revelam sua relação com o meio social, de forma que a maneira que pessoas ocupam e interagem com o espaço revela sua real importância no lugar, mais do que seu uso em si. 
    Um exemplo claro disso é o Teatro Municipal de São Paulo, pois é um marco importantíssimo na cidade. O edifício é símbolo do desenvolvimento cultural e econômico da cidade no início do século XX, uma época em que se buscava uma visibilidade condizente com a sofisticação e poder dos barões de café e que representasse a cidade de modo monumental, mesmo que destoante com a paisagem local da época. O edifício é a tradução em matéria de uma indentidade idealizada naquele momento pela elite e conformou a paisagem que, ao longo do tempo, foi se tranformando ao seu redor. De dentro do Teatro, é possível imaginar os barões e intelectuais da época e os espetáculos que eram apresentados, pois cada elemento material do edifício marca a riquesa e potência de um certo grupo social naquela época. Graças ao seu tombamento e sua frequente manutenção, o edifício mantém viva essas mesmas características. Ao sair do Teatro e entrar no meio urbano, já não é mais visível a relação com esse passado da cidade, mas é possível observar o uso das escadas por moradores de rua, pessoas que pararam para descansar, fotógrafos que registram o edifício, a paisagem história e seus contrastes e passantes que seguem seu caminho em meio a camelôs e cantores de rua.
    De certa forma, os patrimônios culturais são como símbolos que representam os valores de uma parte das sociedade e deixam claro o que se deseja mostrar em determinado momento histórico. Do mesmo modo, a história paulistana da qual temos acesso está muito ligada à dados políticos e fatos que também são escolhidos e reinterpretados para assim serem passados a diante. Isso interfere diretamente na escolha dos patrimônios culturais da cidade, e essa escolha nos diz muito sobre a consolidação de sua imagem. Passei a pensar em como destacar tais patrimônios históricos e de como a conexão entre eles pode estar diretamente relacionada com a história. Ao mesmo tempo, surgiu a questão do próprio tema da história em termos didáticos, questionando as versões de história que são destacados, seria a história oficial de São Paulo na qual aprendemos a aceitar? Quem afinal, define o que é relevante de ser levado adiante e o que deve ser esquecido?

Notas:

1. Krzysztof Pomian: filósofo polonês, historiador e ensaísta. Professor de história na Uniwersytet Mikołaja Kopernika (Universidade Nicolaus Copernicus em Torun) em Torun e, desde 2001, diretor acadêmico do Museu da Europa em Bruxelas.
2. FEITOZA, Paulo Fernando de Britto, “Patrimônio Cultural da Nação: Tangível e inatingível“. Publicação da Escola Superior de Artes e Turismo da Universidade do estado do Amazonas. 2008. p.02.
3. idem 2 p.03
4. SILVEIRA, Flávio L. A.; BEZERRA, Márcia. “Educação Patrimonial: perspectivas e dilemas”. In: LIMA FILHO, Manuel F. et all (orgs.).p.90

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